sexta-feira, 23 de maio de 2014

OS CÉUS DE BRASÍLIA: UMA ENTREVISTA COM JOÃO ALMINO

@redrimell
O escritor João Almino recebeu boas críticas na Irlanda, nos Estados Unidos e na França depois que seus romances Cidade livre e O livro das emoções foram traduzidos para o inglês e o francês. O livro das emoções chegou a ser indicado para o Dublin Literary Award 2014, mas infelizmente ficou fora da seleção de finalistas. Valeu a menção. Dizem que o romance causou um pequeno burburinho por lá. Almino concedeu uma entrevista a rádio RTE para falar do romance. Na França, Cidade livre esteve nas páginas do Le Fígaro e no blog do Le Monde. Em junho ele participa do Festival Étonnants Voyageurs em Saint-Malo, na França. Vejam, não estou querendo dizer com isso que ele seja um fenômeno de vendas nesses países. Pode ser um reconhecimento específico e pequeno, mas não deixa de ser interessante para um autor encontrar leitores de outros países interessados em seus livros.

No Brasil, os livros de João Almino foram publicados pela editora Record e também foram bem de crítica, diga-se de passagem. Nos Estados Unidos e na Irlanda, os romances saíram pela Dalkey Archive Press que costuma traduzir e publicar literatura do mundo todo com características mais experimentais. A mesma editora já publicou, por exemplo, Ignácio Loyola de Brandão, Ivan Ângelo, Osman Lins e Paulo Emílio Sales Gomes. Na França, Hôtel Brasilia (Cidade livre) saiu pela Editions Métailié.

Vale registrar que além de João Almino, também participam do Festival Étonnants Voyageurs os brasileiros Raimundo Carrero, Marcelino Freire, Ana Paula Maia, Bernardo Carvalho, Patrícia Melo, Luiz Ruffato, João Paulo Cuenca e André Diniz.

Aproveitando a boa recepção, o jornalista, tradutor e crítico Jonathan Blitzer entrevistou João Almino para o falar a respeito de sua obra.

@zabumba

OS CÉUS DE BRASÍLIA: UMA ENTREVISTA COM JOÃO ALMINO

Jonathan Blitzer: Você é natural do nordeste do Brasil – Mossoró – mas, seus romances o levaram ao coração geográfico do país: Brasília. Como é que você chegou até lá, exatamente?

João Almino: Eu não queria revisitar a literatura regionalista nordestina que eu tanto admirava e queria tomar como ponto de partida a literatura brasileira dominante da época. Brasília representava o novo. Era de certa forma um espaço vazio, sem tradição literária, e, por isso, me deu mais liberdade para criar. Eu conhecia a cidade porque tinha vivido lá por alguns meses em 1970 e também depois, em três ocasiões diferentes. Gostaria também de acrescentar que era fácil levar o nordeste a Brasília, uma cidade de imigrantes.

O que mais te interessa em Brasília?

Em primeiro lugar, a cidade como um símbolo ou um mito que, como projeto, acompanha toda a história do Brasil independente. Também a cidade como uma metáfora para o mundo moderno, com suas promessas e suas frustrações. A tensão entre o projeto futurista, a utopia, e o atual caos urbano. O contraste entre os elementos racionais do projeto, ainda visíveis no chamado Plano Piloto, e os desenvolvimentos irracionais espontâneos que a rodeiam nas cidades-satélites e comunidades místicas. Além disso, a cidade como uma encruzilhada de vários Brasis e sua natureza transcultural, através da qual eu posso ver o país como um todo.

Você tem alguma memória particular do crescimento de Brasília? Você era apenas um menino quando a cidade estava em desenvolvimento... e, no entanto, imagino que de alguma forma você deve ter sentido aquela novidade...

Eu não vivi em Brasília naquela época, mas tenho memórias de infância da cidade, ler sobre o assunto em jornais e revistas, ouvir histórias de membros da família que estavam lá durante a construção e até mesmo acompanhar na rádio todos os acontecimentos da inauguração. A construção de Brasília atraiu a atenção não só dos brasileiros de todos os cantos, mas também de estrangeiros que ficaram fascinados com a ousadia de seu projeto.

Quando você começou a escrever Ideias para onde passar o fim do mundo, você imaginava que viriam outros cinco romances sobre Brasília?

Neste primeiro romance, cada capítulo tem uma personagem principal. No início, eu pensei que cada uma dessas personagens merecia um romance próprio. Embora algumas dessas personagens tenham aparecido em livros posteriores, quando eu escrevi o meu segundo romance, ficou claro para mim que nem todos precisavam de um maior desenvolvimento. Às vezes, personagens menores prevaleciam, e novas personagens continuavam chegando.

Em As cinco estações do amor, uma personagem diz: “Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente”. Este romance, e o que veio depois dele, O livro das emoções, são livros nostálgicos, melancólicos. Mas esses sentimentos também foram proporcionais a um senso de possibilidade e uma crença na regeneração. Esta saudade não parece tão presa ao passado quanto ligada ao futuro. No caso de Ana, suas lamentações sobre o passado são quase menos acentuadas do que o fato de sentir "o seu sonho do futuro" desaparecer.

Um aspecto interessante é que Brasília representa o moderno, que agora pode ser visto como passado. Lá, as ruínas do moderno estão presentes. Brasília radicalizou uma característica do próprio Brasil: ser uma cidade do futuro, que ainda não tem passado, por assim dizer. Há pouca esperança e uma grande quantidade de memória. Mas, claro, a realidade pode provar que o novo tem a sua história, a sua memória; nada pode ser criado a partir do zero, e a utopia em vez de significar um futuro sempre inatingível pode ser redefinida como uma forma de reorganizar o presente. Em As cinco estações do amor, Ana tenta esquecer para renascer. Indo na direção contrária, em O livro das emoções, Cadu tenta viver através da memória. De certa forma, ambas são tentativas frustradas, mas tem resultados significativos. Tanto o ato de tentar apagar o passado, como a tentativa de recuperá-lo, deixam suas próprias marcas, criando uma nova realidade: as histórias que realmente importam.

O pensamento de Ana me lembra uma frase do romancista argentino Juan José Saer num livro chamado El entenado. Um velho olha para trás em sua vida e num ponto diz: “Y si ahora que soy un viejo paso mis días en las ciudades, es porque en ellas la vida es horizontal, porque las ciudades disimulan el cielo". A Brasília dos seus livros pode ser o oposto. Como a cidade cresce para cima, Ana sente que sua vida se torna cada vez mais horizontal, até um pouco estagnada.

Brasília, que parece ser apenas o céu, pode ser redescoberta através de vidas reais e dramas verdadeiros. Na medida em que Ana olha mais atentamente ao seu redor, ela vai encontrar dimensões inesperadas de sua vida que vão tirá-la da inércia em que ela estava.

Depois temos Cadu, de O livro das emoções. Ele é um fotógrafo de profissão, um filantropo e bon vivant que vive seus últimos anos sozinho e cego. E, no entanto este é o lugar onde sua história começa. Evoca alguém como Brás Cubas, de Machado de Assis: o brilho final, o autoconsciente quebra-cabeças da memória. Quão presente Machado de Assis estava enquanto você escrevia este livro? Borges também está sempre presente. Você poderia falar onde você buscou inspiração para este romance?

Cadu é um fotógrafo no meu primeiro romance. Depois de publicar o meu terceiro romance, As cinco estações do amor, onde o narrador, em primeira pessoa, é uma mulher que teve um caso com Cadu, eu pensei que tinha chegado o momento de escrever um romance a partir de sua perspectiva. Pensei num álbum de fotografias que tinha um significado especial para a personagem, e cuja descrição poderia por si só criar um enredo. Fazer de Cadu um cego que recria suas fotografias pela memória, faria dele o tipo de narrador que eu precisava para transmitir ao leitor essas imagens exclusivamente através de palavras. Eu também adicionei uma camada de reflexão sobre a fotografia. Há muito tempo eu tive a ideia de escrever um ensaio sobre fotografia que nunca escrevi. Assim, fragmentos deste possível ensaio foram espalhados em alguns pensamentos e observações de Cadu. Quanto a Machado e Borges, não tentei imitá-los, mas concordo que alguma inspiração para aspectos ou passagens deste livro pode ter vindo deles: Borges, afinal, era cego, e a perspectiva de um velho manter uma distância de si mesmo para ver melhor o seu passado está presente em seus contos. Cadu pode ser visto como um Brás Cubas, mas a estrutura do livro, em forma de diário, pode ser comparada mais com Memorial de Aires, o último romance de Machado, como observou um crítico brasileiro.

Quando você começou a trabalhar em O livro das emoções num sentido mecânico? Basicamente, o livro é uma articulação de dois diários separados escritos por Cadu em dois momentos diferentes de sua vida. Quão entrelaçadas estavam essas histórias quando você começou?

O diário refere-se à descrição e comentários sobre as fotografias do “livro das emoções”, uma espécie de álbum sentimental. Assim eu tive que articular o diário e o álbum juntos. As fotografias foram tiradas há muitos anos, mas o que o leitor lê é o que está na mente do narrador quando ele recorda cada uma delas. Enquanto o narrador compõe com fotografias este livro de seu passado, ele vive sua vida cotidiana, que é o descreve o diário.

Qual era o "tempo presente" em que você estava operando no momento de retroceder e avançar entre os dois momentos na vida de Cadu?

Na verdade estou sempre lidando com o presente. O futuro imaginário em que o fotógrafo observa seu passado e compõe seu diário serve o propósito de combinar o passado narrado com o nosso presente.

Quem são os autores que mais te inspiraram?

Não sei se aprendi as lições, mas os escritores brasileiros que eu mais admiro são Machado de Assis, Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Além deles e para manter a lista curta, devo mencionar Borges, Proust e Dostoiévski.

Sua formação como um filósofo – é uma identidade que você mantém separada da sua vida como romancista?

Sim. Os processos são muito diferentes e no meu caso não coincidem no tempo. Embora eu tentasse escrever ficção desde o início, primeiro publiquei alguns ensaios em filosofia. Quando comecei a publicar meus textos de ficção, abandonei a escrita na filosofia, com exceção de alguns ensaios – mas não completamente a leitura de filosofia. Eu nunca tentei transferir minhas indagações filosóficas para os romances. No entanto, indiretamente, um pouco da minha formação filosófica pode ter inspirado ideias, algumas às vezes de maneira irônica em alguns dos meus personagens. Por exemplo, em As cinco estações do amor, Ana desenvolve uma chamada “filosofia da instantaneidade”. Esta filosofia é a respeito de alguns dos atuais conceitos de tempo real, o que a filosofia do humanitismo proposto pela personagem de Machado (Quincas Borba) foi para as ideias evolucionistas do século XIX. Ele usa algumas premissas válidas para chegar a algumas conclusões absurdas. No caso da instantaneidade, o conceito em si precisa ser redefinido quase a cada novo instante.

Você está trabalhando em alguma coisa agora?

Depois dos romances que você mencionou, eu publiquei Cidade livre e agora estou trabalhando em outro romance. Não gosto de falar sobre o trabalho em andamento. O que eu posso dizer é que, neste romance, minhas personagens deixam Brasília por um momento e até passam algum tempo na Espanha.

A entrevista acima foi originalmente publicada pelo Buenos Aires Review e traduzida com autorização de Jonathan Blitzer.

@amorimbora

***

Trecho do romance Cidade livre publicado pela editora Record, em 2010.

(...)

Minha insônia de hoje é o prolongamento daquelas horas quando, na escuridão da noite, eu ouvia barulhos de bêbados pela rua, os latidos de meu cachorro Tufão, as araras que moravam no fundo da casa ou alguma coruja solitária, e abria os olhos para o caleidoscópio de cinzas e negros que desenhavam monstros nas paredes.

Para dar vida à história, bastava eu me transpor para um dia de minha infância, me imaginar no meio de uma avenida da Cidade Livre, e então veria minhas tias desfilando suas formas e trejeitos, Valdivino sentado em frente a uma mesinha  transcrevendo cartas, papai conversando na porta de um bar, uma menina de tranças e olhos negros andando de bicicleta, Tufão me seguindo, e veria o colorido das lojas, dos prédios de madeira, carros gordinhos e pretos estacionados na lateral com seus pneus exibindo círculos brancos, e então subiria um cheiro de gasolina, de óleo, de monturos e bostas de cavalo, e apareceriam em tela grande e colorida histórias de crimes, pecados, desesperos e grandes futuros.

Olho para um dia de minha infância e vejo três personagens masculinos conversando em frente a nossa casa, para onde tia Francisca acaba de trazer algumas cadeiras, e nem preciso descrever para vocês a casa de madeira e sem calçada igual a tantas outras que se veem nas fotografias daquele tempo, em frente à qual, eu dizia, os três personagens conversam conversas silenciosas, gesticulam frases, enunciam palavras que não ouço ou, se ouço, não entendo e, se entendo, não me interessam, um deles de rosto oval, branco e bem barbeado, com alguma marca de desgosto, olhar agudo e jocoso, expressão de homem bem-sucedido, que acumulou experiências pela vida. Tufão está sentado a seu lado, ouvindo suas conversas de orelha em pé. É papai.

O segundo, com mãos para trás das quais desce o chapéu, tem um corpo musculoso e bem moldado, ar firme e franco em seu rosto queimado de sol, bigodes bem aparados, e quem o olhasse sentiria inveja de sua aparência feliz. É Roberto, quando ainda não se sabia se seria namorado de tia Francisca ou de tia Matilde.

O terceiro, de uma simplicidade tosca, com um chapéu grande demais para sua cabeça pequena, é conversador, parece inteligente e é o único com esporas nas botas, tendo chegado montado num burro, mas, se atrai minha atenção, é por sua fragilidade. Quando tira as mãos dos bolsos, gesticula sem parar, balança-se para a frente e para trás sobre suas pernas de cambito e dá a impressão de que sairá voando se soprado pelo vento. Os outros dois, quando passam por ele, o olham de cima para baixo. Pela descrição vocês já terão adivinhado: é Valdivino.

Que saudades são essas que sentimos de uma felicidade inventada pela lembrança? Não, não é de hoje minha desconfiança nem minha dúvida, que já estavam lá nos meus tempos de menino, mas tive de esperar vários anos para percebê-las. Meus desejos mudaram, minhas aspirações são outras, já fui bem-sucedido antes de perder quase tudo, mas as horas passam da mesma forma em outros relógios, e o sol, diante das construções que encheram a paisagem, pinta com as mesmas cores a manhã e as esconde igualmente no crepúsculo. Você, meu único e fiel seguidor do blog, tem razão, por que remexer no que está quieto e esquecido?

Naquela primeira noite em que reencontrei papai para tirar minhas dúvidas, ele negou o assassinato de Valdivino, era delicado para mim ressuscitar a velha suspeita, e era melhor, ele me disse, acreditarmos na versão da profetisa do Jardim da Salvação, Íris Quelemém, de que Valdivino não havia morrido e talvez nunca viesse a morrer, sempre fora um insone e um sonâmbulo, ainda andava solto, caminhando dia e noite pela floresta, em busca de Z, a cidade perdida. Deixa isso pra lá, João, são águas passadas.


Às vezes, quando eu ficava recolhido a meus devaneios, me invadia a memória nossa vida na Cidade Livre, feita de lugares e cenas, bem como de histórias de papai, de minhas tias e de outros personagens à nossa volta — entre eles, principalmente Valdivino —, as coisas, fatos e pessoas de minha infância dispostos como numa enorme fotografia de família ou como num tabuleiro distante onde a variedade já se havia desfeito na uniformidade imposta pelo tempo. Somente papai podia, pela primeira vez, reorganizar as peças daquele tabuleiro e retirar da imobilidade a minha memória. É que ele não está morto, ninguém o matou, papai me respondia, está viajando ou apenas dormindo, como Íris disse.


*Fotos: reprodução do Instagram - a autoria está descrita na legenda de cada foto. 
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